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terça-feira, março 22, 2005

Terapias Regressivas. O trauma escondido, a vida passada, deitados no divã. (2)

Foi aos 40 anos que Sónia percebeu que precisava de ajuda. Na altura vivia em casa do sogro, "um homem complicado", e o ambiente era pesado e permeável a discussões constantes. "O meu marido não queria ir viver para outro lado e eu sentia-me contrariada. Tinha grandes depressões, mudava de humor constantemente e acordava muitas vezes com vontade de desaparecer". Um dia caiu e, na rotina dos cuidados preventivos, o médico de serviço aproveitou para lhe medir a tensão. "Receitou-me logo uma quantidade de fármacos. Tinha a tensão tão alta que disse que eu era uma bomba prestes a explodir". Tomou diuréticos e antidepressivos, mas os anos foram passando sem que a tensão baixasse. "Nunca pensei em ir a um psicólogo antes de o meu marido me falar nisso. Ainda demorei algum tempo até tomar a decisão, mas um dia vi uma placa com a inscrição de um nome de um psicoterapeuta, e decidi entrar".
Coincidência ou não, o psicólogo era credenciado em terapias regressivas e, após seis meses de sessões de apoio sem resultados comprovados, surgiu a ideia da terapia regressiva. A verdade é que a tensão não baixara nem indiciava vir a baixar brevemente. "Não, eu não tive medo. Não tenho medo de nada, acho que nunca tive. O que tem de ser feito tem de ser feito", explica Sónia. Sempre fora assim: uma lutadora, um furacão de mulher, uma sofredora também. A mais nova de seis irmãos, crescida no seio de uma família pobre e pouco adepta do diálogo entre pais e filhos, Sónia aprendera a sobreviver, sem esperar muito da vida. Independente e rebelde, acabara por deixar de sonhar, acreditar na vida, em si mesma e nos que a rodeavam. Uma sobrevivente dos tempos em que um filho de limitava a ser mais um ganha-pão. Sabia que era uma pessoa fria, sabia que não se conseguia apegar a ninguém, mas nunca sentira necessidade de consultar um especialista. Até ter uma filha, por quem daria a vida. Foi por isso que, aos 40 anos, depois de crescer, de casar, de chorar sozinha e de aprender a viver em sonhos, Sónia decidiu ir a um psicólogo.
"Tinha eu três anos quando a minha mãe teve de se submeter a uma operação de barriga aberta. Eu não sabia, só soube muito mais tarde. Naquela família não se dizia nada, não se davam explicações às crianças. Foi por isso que, quando me entregaram à minha tia, eu me senti confusa e culpada. Não percebia porque é que tinha de ir viver para longe da minha mãe e dos meus irmãos. Foi um grande choque". Deitada no divã, Sónia regrediu aos três anos de idade e viu a casa, os tios, o rio, tudo numa dimensão muito maior. Parecia-lhe um filme animado, embebido em repulsa e tristeza. Não gostara de estar com os tios. Pouco a pouco, lembrou-se de ver o que não devia e tocar no que não queria. Percebeu que fora abusada pelo tio e que ele, embora nunca a tendo violado, a "visitava" de tempos a tempos com propostas que confundiam a menina de três anos. O abuso durou um ano e meio até a menina voltar para o colo da mãe. Deitada naquele divã, mulher feita, Sónia chorou como chorara a menina que fora. Chorou o abuso e chorou a vontade de falar que a perseguira nos primeiros anos. Já adolescente, a sua memória optara por expulsar essas lembranças, mas isso só acontecera muito tempo depois do trauma.
No aconchego do consultório, ouvindo a voz calma e reconfortante do psicólogo, a paciente lembrou-se da prisão, da angústia de saber que tinha feito algo muito errado mas não saber a quem confessar. "Se a minha mãe soubesse, batia-me logo, e com os meus irmãos também não podia falar pois iriam logo contar aos meus pais. Já não me lembrava daquele sentimento de culpa, daquela vontade de falar".
Quando acabou a sessão, Sónia soube que a prisão acabara, que o segredo já não lhe pertencia e deixaria de gritar nas suas entranhas. Soube que a sua tensão era uma bomba porque o corpo já não aguentava esconder a frustração, a insegurança e a culpa. Hoje tem 50 anos e só contou o seu segredo ao marido, mas a tensão baixou e reconhece que está mais calma, mais segura e mais leve. Não guarda rancor a ninguém. Nem ao tio que a obrigou a crescer precocemente, nem à mãe que lhe negou a infância. "A vida é simples assim", afirma Sónia, mantendo o olhar rebelde de menina. Rebelde sim, admite que o será sempre. Mas calma e segura de si própria, sem culpas nem frustrações, o que nunca fora antes. Hoje agradece o momento de lucidez e amor que a fez entrar naquele consultório.

(in Revista Pública Nº 362 / de Maio 2003)



the lost rose by Natalie Shau


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